Para encerrar a II Semana de Jornalismo da UFC, o jornalista e professor Sérgio Vilas-Boas fará uma palestra sobre Jornalismo literário e mercado (veja programação aqui). Pensando nisso, Plínio Bortolotti, diretor institucional do Grupo de Comunicação O Povo e um dos debatedores da mesa redonda Jornalismo político: os bastidores do poder na cobertura jornalística, no primeiro dia do evento, mandou uma dica de livro aos amantes do chamado jornalismo narrativo.
A obra “Jornalismo e literatura – a sedução da palavra”, de Gustavo de Castro e Alex Galeno (organizadores), traz o conto O repórter de três cabeças, de José Castello, um dos mais interessantes sobre os dilemas vividos pelo jornalista no seu dia a dia. Agradecemos a dica e compartilhamos o conto abaixo.
O repórter de três cabeças
José Castello
Tenho 20 anos e acabo de me tornar repórter policial. O chefe da redação, Sr. Azevedo, me convoca para minha primeira reportagem. Numa favela carioca, moradores ateiam fogo a um homem, acusado de matar a pauladas o filho adolescente. O assassino, com os braços e tórax derretidos pelo fogo, ocupa um leito de hospital público, mas não corre risco de vida. Na favela, o coração destruído, sua mulher vela o filho morto.
Vou primeiro ao morro. É um crime pequeno, um episódio na vida de gente comum. No barraco, encontro apenas um velho Fotógrafo de A Notícia que – com a frieza de um açougueiro experiente – escolhe as imagens mais repugnantes.
“Meu marido é um cachorro”, a mulher grita. “Um bicho!”. Olho o corpo do rapaz, lustroso como um boneco de cera, a cabeça enrolada em bandagens imundas, o rosto borrado por placas roxas. “Ele matou meu filho por nada”, a mulher continua. “Matou como se fosse um rato”.
Encho-me de ódio. Ao chegar ao hospital para ouvir o assassino, pois as normas do jornalismo exigem sempre os dois lados das histórias, trago o espírito arreganhado. Largado em uma enfermaria obscura, o homem parece uma sombra de homem. Uma nódoa na paisagem.
“Por que o sr. fez isso?”, pergunto, mal conseguindo encará-lo. O homem tem os olhos parados, como pérolas sujas esquecidas no fundo de uma gaveta, e não pára de tremer. Insisto: “Por que?”. Ele me olha e diz: “Ele me odiava porque eu sou só um lixeiro.”
Ergo a voz e, em tom de reprimenda, digo que isso não é motivo suficiente para matar. O homem suspira. Depois diz: “Ele roubava meu dinheiro e, enquanto eu carregava lixo, ia para a cama com minha mulher.” Julgo ouvir um ruído vago, mas tenebroso, como se o teto da enfermaria começasse a desabar sobre mim. Não consigo dizer mais nada. Saio.
Na redação, o Sr. Azevedo ordena: “Quero uma história violenta, que tenha início, meio e fim, pois precisamos de manchetes”.
Sento-me para escrever. O esquema clássico do noticiário policial me pede uma narrativa reta, em que haja uma vítima, um assassino monstruoso e uma viúva infeliz. Começo a escrever, mas não posso avançar. Sinto-me tonto. Vou ao banheiro e vomito.
De volta, escrevo uma primeira versão, a mais neutra que posso imaginar, em que os vários pontos de vista se entrecruzam. Ofereço-a ao Sr. Azevedo, Ele lê e diz: “O que é isso, um boletim de ocorrência? Quero uma história coerente, e não um relatório”.
Volto para a máquina e escrevo, agora, três versões da reportagem. Ajo como um repórter que tivesse três cabeças. Na primeira, o homem é um cão danado que mata a pauladas um filho ingênuo e infeliz. Na segunda, é um homem fraco que enlouquece, manipulado pelo filho pervertido e pela mulher incestuosa. Tento uma terceira versão em que pai e filho são inocentes, fantoches nas mãos de uma megera.
As três narrativas não cabem em uma história só e, no entanto, seria assim, na conjunção contraditória das três, que eu estaria mais próximo da verdade. Mas, eu descubro, ela é o que menos importa a meu chefe.
O Sr. Azevedo, com ar agastado, vem me cobrar a reportagem. “Nossa hora estourou”, grita. Fecho os olhos, misturo as três páginas datilografadas, sorteio uma delas e, sem ver o resultado, entrego-a. O Sr. Azevedo lê e diz: “Agora sim a história faz sentido”.
Tomo o ônibus para casa. Levo no bolso as duas versões desprezadas. Amasso-as e jogo pela janela. Deixo que o vento do Aterro do Flamengo bata com força em meu rosto, castigando-me. Tento respirar, ainda sem sucesso, pois é como se uma rolha de decepção me trancasse o peito.
Não tenho coragem no ler o jornal no dia seguinte. Até hoje não sei qual de minhas três versões foi publicada.
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Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo (5/8/1997), incluído no texto “Jornalismo, literatura e representação”, de Nanami Sato, no livro “Jornalismo e literatura – a sedução da palavra”, de Gustavo de Castro e Alex Galeno (organizadores). São Paulo, Escrituras, 2002.
Realizado pelo Programa de Educação Tutorial do Curso de Comunicação Social da UFC, a II Semana de Jornalismo acontece entre os dias 04 e 07 de abril no Auditório Rachel de Queiroz (CH2), discutindo o tema "Jornalismo Especializado".